Guitarrismos

Mês: julho, 2015

Dois cents sobre percepção e treino de ouvido

“Playing by ear” is a phrase that I have trouble with — I don’t see any other way of playing. – Dave Douglas

“Tocar de ouvido” é uma frase com a qual eu tenho problemas – Eu não consigo ver outra maneira de tocar. O über trompetista Dave Douglas tem um ponto interessante. É meio louco isso de dizer que alguém toca ou não toca de ouvido. Não existe outra forma de tocar. Se os seus ouvidos não estão ligados enquanto você toca, então temos algo errado aí.

O ouvido é a primeira e última ferramenta do músico. Qualquer instrumento musical (e pode incluir a voz humana no pacote) é secundário. Ouvir claramente e de forma inteligível o que se faz é a condição básica para se tocar.

E eu não sei como dar mais enfase ao termo inteligível. O músico precisa ter uma clareza muito grande do que está acontendo. Quanto mais consciente, melhor. Não há espaço para o ouvir distraído, como quem deixa a TV ligada e vai fazer outra coisa.

“Ah, falar é fácil, Rafa. Mas percepção é difícil pacas.”

Concordo. E compartilho da sua dor.

O fato é que essa habilidade é muito sutil e razoavelmente complicada de usar. É quase um super-poder, que precisa de bastante treino para ser usada de forma inteligente. Domina-la é um trabalho de uma vida inteira.

Ao longo da minha caminhada musical, eu aprendi algumas coisinhas sobre percepção. Coisas que eu vou dividir com vocês agora

Ear training x Percepção

Os anglófonos tem um termo que eu que eu acho bem bacana para aquilo que tomamos como percepção musical: ear training, que se traduz como “treino de ouvido”.

Parece a mesma coisa, se pensarmos nos métodos existentes para fazer alguém aprender música. Mas há uma diferenca conceitual sutil entre “treino de ouvido” e “percepção”: o primeiro trata de um processo de refinamento de habilidade (treino) e o segundo de uma função cognitiva aparentemente óbvia, mas ultra complexa, que faz com que um fenômeno externo ao ouvinte provoque uma experiência psico-sensorial interna.

É bem complicado falar dessa experiência interna. Em última instância, é essa experiência que faz com que você perceba ou não perceba algo.

Este artigo do Dailymail UK, o autor explica como que determinadas sociedades e tribos não enxergam a cor azul, por um motivo simples e complexo ao mesmo tempo: eles não tem nem um nome e nem um conceito para azul. E como não fazem idéia do que é o azul, não podem enxerga-lo. O autor demonstra como a nossa percepção não está ligada apenas ao funcionamento correto dos nossos orgãos sensoriais.

“Rafa, mas então, se eu não tiver como conhecer algo previamente para poder percebe-lo(a), como diabos vou percebe-la pela primeira vez para que eu consiga entender e realizar aquilo?”

Esse é o paradoxo da percepção. O que acontece lá fora depende do que acontece aqui dentro e vice versa. E é por isso que é tão difícil domina-la.

Minha história pessoal

Quando eu comecei a estudar percepção, eu tinha uma dificuldade enorme em entender os acordes maiores e menores com sétima e as cadências. Eu também ficava sem chão quando o professor tocava acordes invertidos, principalmente na segunda inversão. Aquilo soava muito alienígena para mim.

O fato é que, a vida inteira, eu tinha ouvido basicamente rock. Quase nada de música erudita, jazz ou música brasileira até então. E no rock é muito raro você encontrar aquelas progressões e inversões típicas de aulas de percepção, naquele formatinho que sempre termina numa cadencia perfeita.

Eu estava acostumado a ouvir escalas modais, e achava muito estranho aqueles exercícios com tonalidades maiores e menores puras. Não soava como a música que eu ouvia.

Nunca que eu reconheceria uma cadência perfeita – aquela perfeitona mesmo, com movimento de quinta descendente no baixo e sensível indo a tônica no soprano (ou lead voice, para os jazzistas). Eu só ouvia cadencias modais e de blues, que funcionam de um jeito um pouco diferente – cadências que, na época, eu nem fazia idéia que eram cadências. Eu não conseguia decifrar aquilo que soava tão diferente das coisas que eu tinha ouvido a vida inteira.

Mas tinha vezes em que eu conseguia saber com precisão e clareza qual era o acorde e a melodia tocada, quando as notas batiam com alguma música que eu conhecia.

Meu ouvido foi mudando aos poucos, depois de bastante treino. Mas eu prefiro pensar que foi a minha mente que mudou, na real. O ouvido – ou aparelho auditivo, nesse caso – continua mais ou menos o mesmo, segundos os testes de audiometria

Foi muito tempo solfejando, escrevendo e transcrevendo coisas, lendo à primeira vista e mudando minha dieta musical. Passei a ouvir mais jazz, música brasileira, peças para orquestra, grupos vocais, etc. Tudo isso foi mudando a minha experiência para com a música, e por tabela a minha percepção.

É por essas e por outras que eu prefiro pensar o “treino de ouvido” e a “percepção” como coisas distintas, mas correlacionadas.

Está tudo na mente

A transformação na percepção é uma parte do processo gigante de transformação da mente do músico, de alguém alheio à música em um músico consciente do que acontece. Obvio, é um processo a ser refinado ao longo da vida inteira. Para mim, ele ainda não está completo (e eu gosto de pensar que nunca vai se completar, na real), mas está bem melhor do que em outros tempos.

Tá, eu faço o que então para me transformar num músico melhor?

Vamos lá:

  1. Aprenda a ter calma. Esse é o conselho mais importante de todos

    Repito: é o conselho mais importante de todos.

    O treino de ouvido e a percepção musical normalmente são aplicados sobre uma música que é tocada ao longo do tempo, com frases e progressões que mudam o tempo todo. Às vezes mais devagar, às vezes mais rapidamente, mas tudo muda o tempo todo. E para se ligar no que está acontecendo, no momento exato que está acontecendo, é preciso ter calma.

    Ansiedade, medo, a sensação de que não tem um ouvido bom o suficiente ou qualquer outra aflição mental desse tipo só atrapalha. É preciso estar relaxado para perceber o que há para ser percebido e examinar com mais calma determinados sons que não ficaram muito claros.

    Sem tranqüilidade, não há a menor possibilidade das coisas começarem a fazer sentido.

  2. Procure um bom professor ou uma boa aula de percepção. Ainda que você já saiba tirar (ou já tenha tirado) suas músicas favoritas de ouvido, o treino formal vai te expor a situações e sonoridades com as quais você não está acostumado. Educação formal é importante.

    A idéia é essa mesma: expor você ao que você não entende.

  3. Mantenha uma rotina de estudos regular. Mesmo que você não disponha de muito tempo para estudar, é importante praticar um pouco todos os dias. O importante é a regularidade
  4. E por rotina regular, entenda-se “longe das distrações”. O estudo é um trabalho mental. Se a sua mente não estiver totalmente engajada naquilo, o estudo não vai render.

    Isso significa se desligar de qualquer fonte de distração que você tenha por perto. Facebook, joguinhos, televisão,Whatsapp, etc.

  5. Tenha paciência: como eu disse, é um estudo para a vida inteira.

    Estudei durante dois anos fora da faculdade e dois anos dentro dela. Depois que eu me formei, ainda pratiquei nas épocas em que dava aula (e precisava transcrever coisas) e quando trabalhei na orquestra. Hoje eu voltei minha prática para o grupo de jazz no qual eu faço parte.

    Parece bastante tempo, mas não é nada. E eu ainda acho que preciso melhorar muito.

  6. Mesmo devagar, vá conferindo se você fez progressos ou não: justamente por se tratar de um processo lento, é preciso avalia-lo constantemente para não perder tempo e nem entusiasmo.

    Esse é outro bom motivo para procurar um professor, que poderá te dizer se você está de fato progredindo ou não.

  7. Transcreva solos e harmonias de vez em quando. É o famoso “tirar de ouvido”, só que escrito numa partitura ou cifra,
  8. Faça parte de um grupo, de preferencia que toque coisas em que você possa improvisar. Tocar com outras pessoas oferece a oportunidade única de ouvir as idéias musicais que se existem na cabeça das outras pessoas. Idéias de solos, licks, progressões, levadas, etc. Um bilhão de coisas que você talvez jamais tivesse pensado. E você também as brindará com suas idéias, que muito provavelmente nenhuma das outras pessoas da banda teria feito parecido.

    Você (e os outros) vão precisar se ligar no que os outros estão fazendo ali, na hora. Com todos os erros e eventuais rasteiras que uma pessoa de na outra. É a percepção aplicada ao vivo e em tempo real.

  9. Pratique de forma pouco óbvia. Isso vai te ajudar a criar confiança nas próprias habilidades.

    Sabe quando você está no elevador e ele começa a fazer aqueles sons? Tente tirar aquilo de ouvido como se fosse um exercício da aula de treino de ouvido. Ou quando você estiver no metrô e os anúncios começarem a soar.

    Você vai perceber que o mundo é mais musical do que você imagina

Coisas que você aprende quando está há quase um ano numa mini big band

1 – Ensaios de naipe são a coisa mais importante do mundo

2 – Um ensaio por semana é pouco

3 – Por outro lado, ensaios de cinco horas são um pouquinho demais

4 – Ter mais de um cantor (ou cantora) é bacana. Rola uma diferença de timbres e estilos, mesmo quando a galera canta dentro do mesmo estilo. Fora que tem músicas que escolhem alguns cantores e não outros, além de sempre ter gente pra fazer aquela abertura marota de vozes.

É o melhor dos dois mundos.

5 – O maestro manda. Mas o batera manda muito mais

6 – Saber montar um setlist bacana é uma arte que poucas pessoas dominam

7 – Sempre deixe a guitarra e o amp regulados para conseguir tirar um som razoavelmente forte. A galera com certeza vai reclamar enquanto você afina o instrumento e talz. Mas se você não fizer isso, o seu som vai desaparecer quando começar a pressão da batera, dos saxes e dos trompetes.

É melhor regular uma intensidade forte e ir tirando aos poucos do que fazer o contrário.

8 – Quando for aplicar o conselho acima, lembre-se de que todos os canais devem ter mais ou menos a mesma intensidade. Não faz sentido ligar o crunch para uma base e ele soar infinitamente mais forte que o resto da gig. A transição precisa ser similar em termos de volume, o que pode ser bastante complicado dependendo do equipamento.

A única excessão é quando um canal é usado só para solos: esse sim precisa estar sempre um pouco mais forte que o resto.

8 – Amp valvulado só presta quando tá quentinho.