Idiossincrasias

Todo instrumento (e consequentemente o instrumentista) tem suas idiossincrasias.

O pianista, por exemplo, é quase um monge. Ele precisa dedicar horas e mais horas solitárias a decifrar aquele instrumento gigante, cheio de notas e recursos.

É diferente do trompetista, que por sua vez tem um instrumento de tamanho consideravelmente menor e que toca menos notas. Além disso, ele só pode tocar uma nota por vez. Para fazer um acorde com som de trompete, é preciso uma galera (vulgo naipe) tocando junta como se fosse um músico só. Logo, é normal pro trompetista trocar idéia com outros trompetistas desde os primeiros estágios do seu aprendizado.

Não que pianistas não precisem lidar com outros músicos. Muito pelo contrário: ele tem que ensaiar com cantores e coros, reduzir seções inteiras de orquestra para o piano, solar, improvisar, etc.

Mas o fato é que cada instrumentista parte de um ponto diferente sobre como tocar e se relacionar musicalmente com outros instrumentistas.

Com a guitarra não seria diferente.

Seis (ou sete) cordas

O guitarrista tem um instrumento harmônico mais ou menos completo (leia-se: toca acordes, linhas melódicas, múltiplas vozes, efeitos bizarros, cantar se acompanhando, etc.). Esse tipo de instrumento, que oferece muitos recursos, costuma demandar uma quantidade considerável de tempo do estudante até que ele ganhe alguma fluência.

Pensa: o sujeito precisa se entender no meio daquele monte de cordas e casas, usando desenhos de escalas e arpejos (que nada mais são do que pura abstração, pura piração) para se achar.

É como jogar um jogo com regras super complicadas. E muita gente começa aprendendo a se virar ali sozinho, antes de sequer cogitar tocar com outras pessoas – não que isso seja natural, e nem necessariamente bom ou ruim.

Some-se o fato de boa parte dos guitarristas ter aprendido boa parte do seu repertório de ouvido, tocando por aí (o que é bom) sem ler nadinha (o que é ruim)

Isso molda o mindset do músico.

O cara da banda

A guitarra, mais do que qualquer outro instrumento, tem seus ídolos.

Não que não existam lendas nos outros instrumentos. O que não existe (e até poderia existir) são as listas dos 100 ou 50 melhores oboístas, ou clarinetistas, ou trombonistas da Rolling Stones. Faça o teste você mesmo: peça para alguém citar, digamos, alguns violoncelistas famosos (grandes chances de citarem o Yo-yo Ma) e depois citar algum guitarrista ou violonista de renome.

Fato: muita gente busca esse instrumento para se sobressair – o que é meio ironico, dada a quantidade de absurda de pessoas que afirmam que tocam esse instrumento.

Não é lá a melhor das motivações, mas ainda é uma motivação, que pode ser usada para o crescimento do músico e fazer ele sair um pouco de dentro do proprio ego e da própria cabeça. O sujeito pode começar olhando apenas para o próprio umbigo, mas aos poucos começa a enxergar o mundo lá fora e interagir com outros músicos.

Pode ser que ele se torne ainda mais babaca por meio do instrumento. Mas pode ser também que ele se torne uma pessoa melhor. =)

Os supervirtuosos

Todo guitarrista de nível intermediário já se meteu a tocar alguma coisa do Vai ou do Satriani. Always with me, For the love of God, Summer Song. etc. Ou alguma coisa do Malmsteen. Ou do Dream Theather.

Vocês entenderam o meu ponto: esses caras (e suas músicas) de imensa expressividade e dificuldade técnica, são uma espécie de santo graal pra nós. A gente trilha os mesmos passos deles, buscando ser tão bons quanto. Queremos reduzir nossas limitações técnicas e ampliar nossa capacidade de expressão musical.

Eles são puta referencial para muita gente. Se você pensar que essa galera começou lá pela década de 80 e tá até hoje sendo influente de alguma forma, é porque tem alguma coisa especial aí.

Só que essa busca tem um efeito engraçado, que é encarnado pelo sujeito que passa boa parte do seu tempo trancado no quarto, lendo transcrições ou tentando tirar de ouvido o som dos caras.

Não há mal algum em estudar esses mestres, exceto o mal da piração de ficar trancado dentro do próprio quarto (e da própria cabeça) por muito tempo. E por piração, entenda-se também abandonar uma dieta de estudo e escuta balanceada, que reduz tudo a um esboço de ideal estética (que também é ofensa ao trabalho dos caras).

Pedais

Fato: nenhum outro instrumento conseguiu se consagrar como objeto de consumo, símbolo e ralo de dinheiro.

Não que outros instrumentos não sejam caros. Mas nada é como a guitarra.

O violinista resolve a sua vida com dois violinos (um bom e barato e outro foda) e meia dúzia de arcos. O do violoncelo, idem, embora tenha mais problemas de logística dado o tamanho do próprio instrumento. O pianista, por sua vez, precisa ter um para estudar em casa, e normalmente toca no piano que fica à sua disposição onde vai se apresentar.

Já o guitarrista, além das guitarras e cabos, tem um milhão de pedais de efeito que fazem coisas diferentes. Há quem viva uma vida inteira sem conseguir montar o setup dos seus sonhos, ou algo que resolva as próprias necessidades musicais.

Sim, estamos falando de um mercado enorme de caixinhas coloridas que fazem barulho, mas que nem todo mundo sabe exatamente para que serve ou como funciona. Algumas são mágicas, outras são um lixo, mas pouca gente realmente sabe usa-las.

Mas assim mesmo a gente vai lá e gasta o dinheiro feliz nesses brinquedos de adulto.

Outras piras

Essas idiossincrasias acima (que nem são exatamente piras, mas são) podem ser um indício de como que anda a nossa motivação e a nossa prática musical. Mais do que um problema, são um sintoma de algo que pode ser equilibrado, melhorado e revertido em algo positivo dentro da prática

E vocês? Quais outras piras vocês lembram?